quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A nereida

- Posso falar um minuto com você? – Ari, o rapaz que vivia livremente pelo centro da cidade colocou sua mão no meu ombro, e eu o olhei com um levantar de sobrancelhas.
Eu voltava de um espetáculo no Sete de Abril, em que se encenara o poema trágico Fausto, de Goethe, e não sei diferenciar se foi coincidência ou não, privilégio ou não, que eu atravessasse a Praça Coronel Pedro Osório, a caminho da zona do porto, e, em um primeiro momento, não encontrasse com o rapaz. Era uma noite de lua cheia e eu trazia, marcados na cabeça, os recursos de persuasão usados pelo demônio Mefistófoles para convencer todos de que poderia conquistar a alma de Fausto – um favorito de Deus – aquele que tentava aprender tudo que poderia ser conhecido.
Eu estava ambientado com o cenário da Praça, talvez fizesse parte dele naquele momento, mas, no meio de tantas imagens fixas, eis que me deparo com o inusitado: uma das Nereidas do chafariz, mais tarde ela me diria seu nome, olhava-me com um brando sorriso enquanto tentava controlar seu cavalo. Parece-me que o artista que dera traços fortes àquele monumento vislumbrava nosso encontro.
Uma das coisas que mais me atraia era a harmonia da linguagem antagônica entre o supostamente frágil – visto no detalhamento da mulher –, e o bruto – que reside na composição do cavalo. E foi, subindo os degraus, que me aproximei da borda do chafariz, ficando frente a frente com Ana, a moça que estava sobre o animal. Não pude conter-me quando me convidou para dar uma volta em sua garupa. Segurei-me em seu braço esquerdo e subi no cavalo. As batidas do meu coração junto ao fluir da água empoçada formaram uma melodia descompassada em mim. Estava começando a chover, e eu, ali, naquele ponto em que se pode observar parte do centro histórico pelotense. A sensação era de que eu me perdia de mim.

*

Foi assim, com o espírito como que vagando na praça, que passeamos, conversando em uma língua que parecia fazer sentido apenas a nós dois. Virando-se no sentido sul, o cavalo, neste momento com as rédeas soltas, pois Ana decidira virar-se para mim, seguiu, a passo, rumo ao porto da cidade. Não sei se por causa das doses de whisky, que havia bebido em casa antes de ir ao Theatro, eu vivia a irrealidade e acreditava em Ana. Que ela soubesse que era quase que imperioso, abraçá-la e misturar sua intimidade à minha. Pretensão imaginar que ela compreendesse meus sentimentos e que quisesse realmente me acolher. Sei que é absurdo, mas tinha fé nisso. E, sim, ao pararmos em frente à igreja cabeluda, ícone do anglicanismo pelotense, desci do cavalo e, como um cavalheiro, a fiz escorregar pelos meus braços. Beijamo-nos pela primeira vez.
Quando dei por mim, estávamos de pé ao lado do animal. Este, por sua vez, ensaiava comer a vegetação que embeleza a tradicional igreja. Lembro que, enquanto descíamos a rua General Telles, tocava de leve, quase que respeitosamente, humildemente, a mão de Ana, enganando a mim mesmo que isso bastaria para satisfazer meus instintos. Mas era evidente que não. Em um primeiro momento, seguimos assim, como que um casal de namorados, romanticamente, nossa caminhada.
Eu estava relacionando-me com uma estátua? Como, se eu sentia, delirantemente ou não, que sua pele tinha estava quente? Sim. Era verdadeiro para mim. A chuva tocada a vento intensificou-se, fazendo os cabelos de Ana se mexer levemente, e logo percebi uma oportunidade de fazer carícias nele. Como se a Nereida estivesse à vontade com meus carinhos, senti-me como Fausto: estava conhecendo um novo sentimento.
...

Foi por volta das 2h que me percebi sentado, nas doquinhas, ao lado daquela Nereida. No céu, as nuvens dissipavam-se como o algodão doce ao ser comido por uma menina no parque. Não se enxergava mais o cavalo, o que me fez entender que talvez continuasse a comer os ramos presos à parede da igreja cabeluda. Estávamos a sós, eu e Ana – ou, no mínimo, parecíamos estar.
Conversávamos, quase que com rostos selados, a respeito da monotonia da praça onde se dera nosso primeiro encontro. Ana contara-me seus desejos mostrando-se muito relaxada junto a mim. Relatou-me sua viagem, realizada em 1873, da Escócia até Pelotas, e, fixando seus olhos nos meus, afirmou saber, desde sempre, que encontraria alguém com que pudesse deixar o estado de monumento e transformar-se em mulher, sentir o que é ser mulher. Posso garantir que a afirmação me acelerou. Despertou-me o desejo de ter aquela recém feita mulher em meus braços. Procurando não ser indelicado, beijei-a e lembro que, com a mão esquerda, acariciei, fingindo uma despretensão, sua coxa direita.
Ana suspirou, não tive dúvida, então, de que ela havia sentido algo novo para o mundo das estátuas, contudo, assim como se estivesse voltado a si, afastou-se. Disfarcei e olhei para o barco que estava ancorado logo a nossa frente, mas, quando voltei o olhar a ela, foi apoiando seu corpo no meu. Ela estava de costas, o que fez a palma da minha mão tocar seu peito. Quando percebi que Ana estava de olhos fechados, pude sentir-me tranquilo para acariciar seus seios macios, ainda de leve para não parecer rude. O tempo inteiro, policiava-me com a intenção de demonstrar casualidade. Sua veste era apenas um manto branco, e aquilo despertava, cada vez mais, meu desejo.
- É a sua primeira vez? – atrevi-me a perguntar, quase que suspirando.
- Aham. – respondeu-me com sua voz suave, de quem passou longos tempos calada. A Nereida agora suspirava ao meu ouvido, sem contenções, mostrando uma respiração ofegante. Pareceu-me uma moça que se deixava levar, creio que por sua falta de experiência, mas entendi que não depois que desabotoou minha camisa, abriu o zíper da minha calça e mostrou-se submissa. Senti-me distante naquele momento, ouvi solos de guitarra saindo de mim, resolvi, logo, cruzar a barreira e penetrá-la. Nesse instante, formamos um só corpo. Gemíamos, contidamente, talvez com medo de sermos ouvidos por alguém. Acreditei que ela quisesse sentir o sabor do whisky em minha boca, e beijei-a mais uma vez, enquanto gozávamos da relação. Como é bom conhecer coisas novas.

*

Subitamente eu estava, sobre a amurada da borda do chafariz da praça, molhado, despido, com minhas roupas jogadas ao chão, sendo tocado por um rapaz que parecera ter presenciado minha experiência. Já havia amanhecido, e ele pediu para conversarmos um instante, mas que me vestisse primeiro, pois logo o povo pelotense começaria a transitar por ali, principiando mais um dia de trabalho. Aquela cena me assustou, mas não me senti envergonhado. Estava satisfeito com a minha experiência, mesmo que fizesse sentido apenas para mim. Então, fomos lado a lado, até o Café Aquarius, e, de pé ao lado do balcão do estabelecimento, foi que Ari perguntou-me: “estás precisando de ajuda?”.

Gabriel Borges
Professor, poeta, escritor e compositor. É pelotense. Publicou "[in]fértil - poesia alguma", no ano de 2010. Encontra-se em fase de conclusão de sua estreia na narrativa: um livro de contos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário